Benfica, um conto noir
Estava deitado no meu escritório de ressaca. Doía-me a cabeça e o corpo e o meu hálito ainda fedia a whisky. Ultimamente, com a falta de casos, andava a sair mais à noite para esquecer a crise: ser detective privado em tempos de austeridade não compensa. Foi aí que o telefone tocou (eu já não tinha casos há tanto tempo que nem me lembrava do toque do telefone). Quando atendi, a voz do outro lado soava preocupada.
"Detective M.?"
"Sim."
"Daqui é um adepto do Benfica. Vou precisar da sua ajuda."
"Farei o que puder."
"O Benfica desapareceu."
Ah, o Benfica. Acendi um cigarro e lembrei-me de 2009/2010, a última vez que beberamos um copo. Foi numa noite de chuva, na Luz, e acabámos a noite a dar um bom pontapé nos tomates do Porto. Foi uma boa noite, porque já não nos encontrávamos há uns bons anos. Tínhamos sido amigos desde sempre. Mas em 1995 o Benfica meteu-se com gente esquisita. Um tal de Artur Jorge, com a mania que era poeta, acabou por separá-lo de mim. De vez em quando telefonávamo-nos, mas desde aí senti que o Benfica tinha mudado. Um gajo não admite, mas sempre tive saudades dele e em 2009/2010 o reencontro foi mesmo bonito. Até fomos para os copos em Marselha. Mas os últimos dois anos foram esquisitos e o Benfica fez-me coisas que nem vos vou contar. Só que apesar deste meu aspecto duro, sou um sentimentalão: eu tinha de aceitar o caso.
"Encontramo-nos na Luz daqui a uma hora."
Quando cheguei à Luz estava frio e chuviscava, como se Lisboa também sentisse falta do Benfica. Ao longe, cinco tipos bebiam cervejas numa roullote. Tive saudades de vir aqui com o Benfica. Acendi outro cigarro e estava a tentar não me arrepiar com recordações como Leverkusen quando o adepto me bateu no ombro.
"M.?"
"Muito prazer."
"Obrigado por ter aceite o caso."
"O que se passa? Quando foi a última vez que viu o Benfica?"
"Epá, o Benfica andava esquisito, mas animado, percebe? Um gajo via-o aí pelas ruas todo contente, como se tivesse o Mundo na mão e ninguém lhe quis dizer para ir trabalhar. O Benfica dizia que tinha tudo controlado e tal. E nós, os amigos mais chegados, acreditámos. Estávamos contentes de o ver assim, percebe? Depois de tudo o que o Benfica passou..."
"E o que é que aconteceu?"
"O Benfica foi para os copos em Guimarães e veio de lá um bocado marcado. A malta percebeu que a coisa já não ia tão bem. Depois foi a Coimbra e disse que tinha sido lá gamado e já andava a pedir guito à malta. Claro que para nós é difícil dizer que não..."
"Como assim?"
"Epá, é o Benfica."
"Mas não lhe disseram nada? Não era óbvio que as coisas andavam mal?"
"Eram, mas só quando tivemos aí uma noite má é que topámos. Estávamos todos aí na noite quando vimos o Porto a pontapear o Benfica no chão. Pontapés na cabeça, uma cena violenta, mesmo."
"Foda-se. Mas não sabem com quem é que o Benfica tem andado? Não há pistas."
"Epá, diz-se que o Benfica anda metido com um tipo da Amadora, o Jesus, não sei se já ouviste falar. Parece que o Jesus lhe prometeu trabalho e que ele ia ganhar o dobro, uma cena assim. Foi a última vez que soube do Benfica."
"Mete-te em casa, meu. O Jesus é um dos duros. Eu ligo-te quando tiver novidades."
Já tinha ouvido falar deste Jorge Jesus. Um tipo com fama de chico - esperto da Amadora. Cabelo esquisito, falar quase incompreensível. O tipo de gajo que tanto pode estar a beber um copo contigo como prestes a dar-te uma facada. Meti-me no carro e fui à Amadora.
Cheguei à Amadora e fui ter ao bar onde o Jesus costumava estar.
O ambiente era pesado. Motards da Amadora e muitos capangas. O Jesus era aquele tipo com a mania que é o rei da pista. Bebia a sua terceira Carlsberg cheio de si e a falar alto, contando histórias que pareciam inventadas sempre na primeira pessoa. Como é que o Benfica se tinha aproximado de um tipo assim? Cheguei-me ao pé do tipo e pedi um whisky.
"Sabes, Jesus, Carlsbergs qualquer um bebe. Podias era fazer-te homem e pedir um whisky."
O cabrão olhou para mim com aquele ar de marialva, desafiador, à espera que o bar todo o apoiasse se andássemos à porrada.
"Era mesme de um tipo come tu que eu estava à espera no sorteio para me animar o dia."
"Jesus, e se te deixasses de tangas e me dissesses onde é que está o Benfica?"
"Deves ter a mania, tu... O Benfica está muito bem d`sde ca começou a trabalhar pa mim e pó patrão. O Benfica é nosso, meu. E põe-te daqui pa fora."
Quem seria o patrão? A cara e o discurso do tipo estavam-me a irritar, mas o mais importante era desmascará-lo. Resolvi enervá-lo:
"Eu saio do bar, Jota. Não me quero meter com gajos que ficaram atrás do Nacional do Manuel Machado..."
O tipo enervou-se e sacou uma faca. Atirou-se todo para a frente contra mim. Só tive de me desviar e deixá-lo cair. Enchi-o de pontapés na cabeça. Não curto gajos que se acham superiores ao Benfica. Deixei o gajo cheio de sangue e o bar não fez nada. Afinal, muita gente não curtia o gajo.
Peguei-lhe na cabeça pelo cabelo pintado e disse-lhe ao ouvido: "O teu problema, Jesus... É que treinas mais o ataque que a defesa.". Mas não valia a pena, o anormal já não respirava.
Acendi um cigarro fora do bar e enquanto matutava sobre quem seria o famoso patrão, um tipo argentino chegou-se a mim. Um Aimar.
"Mira: el jefe de Jesus es Vieira. Se echas a Vieira, recuperas el Benfica."
Vieira. Vieira. Só o nome pôs-me mal disposto. Esse tipo tinha uma fama do pior. Havia quem dissesse que ele era sócio do Porto. Só de me lembrar disso cuspi para o chão, enojado. Como é que o Benfica, o meu Benfica, tinha acabado misturado com esta gente? Com esta corja de aldrabões, de bandidos? O Vieira era conhecido como um escroque do pior: tráfico de jogadores em camiões, eleições muito duvidosas e um crescimento à custa de mentiras e jornalistas comprados.
Lembro-me vagamente do Benfica me ter falado nele. O cabrão prometeu ao Benfica ter uma super equipa a trabalhar com ele. Só portugueses (vão ser a tua espinha dorsal!, prometeu o bandido). Prometeu-lhe tudo: casa, finanças organizadas e uma vida do caraças. Na altura disse ao Benfica que a coisa me parecia suspeita (o tipo antes era amigo do Polvo), mas o Benfica estava a recuperar de uma fase difícil e deve ter acreditado.
Eu sei que o adepto é que mo tinha pedido, mas fazia-o mais por mim e pela minha ligação ao Benfica do que pelo caso em si. Verifiquei que o revólver tinha balas e mandei mensagem ao adepto para ir ter comigo à noite, ao meu escritório. Meti-me no carro e fui direito à mansão do Vieira.
A entrada estava bem guardada: aqueles guarda costas, o Delgado e o Gomes da Silva, tinham montado um bom esquema de segurança. Mas só contra os papalvos, porque as brechas eram demasiado evidentes. Saltei o muro d`"A Bola" e entrei calmamente.
Lá dentro a coisa tornou-se mais labiríntica. Tive que me esconder enquanto passavam cá para forma uma série de estrangeiros ilegais, claramente em tráfico: Zahovic, Pesaresi, Moretto, Marcel, Andrez Diaz e muitos outros pequenos bandidos há muito desaparecidos do submundo da Luz. Avancei por um longo corredor de revólver em punho e parei perto de uma porta entreaberta. Lá dentro, um homem conversava ao telefone: "...Está tratada a transferência para Zaragoza. Sim, sim. Depois falamos para Madrid outra vez. ... Não, não. Já te disse que este ano não. Depois do Sálvio e do Reyes dá muita cana.... Vá, um abraço, hombre"
Do Benfica nem sinal. Avancei em silêncio e encontrei a porta principal. Espreitei e lá estava o Benfica à mesa com o Vieira. Atrás dele, o emblema de 25 anos de sócio do Porto.
Entrei de repente, de pistola em punho.
"Anda, Benfica, vamos para casa."
"M.? Que é que fazes aqui?"
"Vim buscar-te. Há muita gente preocupada contigo. Larga este gajo, é um bandido, não te quer bem, só te quer usar."
O Benfica pareceu confuso, olhando para mim e para o Vieira alternadamente.
"Não sejas assim, M. Tu sabes que eu já estive pior. Lembras-te de quando eu me dava com o Vale?"
"Cala-te, caralho. E anda para casa. Nem Vales nem Vieiras. Caga neste gajo."
"Epá, M., tens de ter calma. O Sr. Vieira deu-me uma casa nova."
Peguei-lhe no braço e gritei-lhe: "Benfica: nos últimos onze anos, foste feliz? Diz-me, foste feliz? Saíste à rua, voaste pelo Marquês? Viajaste pela Europa, orgulhoso de ti? Diz-me, porra, diz-me!"
Mas antes que o Benfica me respondesse, senti o ardor da primeira bala nas costas. Uma sensação quente e vazia ao mesmo tempo. Depois senti a segunda e a terceira bala nas costas e o sabor do sangue a vir-me à boca. Quando caí de joelhos, vi o adepto entrar, de arma na mão. Quando meus olhos começaram a ficar vermelhos, só tive tempo de o ver levar o Benfica outra vez para junto da secretária de Vieira. Tinha sido tramado e usado. Tinha matado o Jesus, mas o Benfica tinha ficado outra vez nas mãos de Vieira.
Caí desamparado, recordando aquela noite em Leverkusen, onde eu e o Benfica parecíamos unidos para sempre.
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Do melhor que li na Gloriososfera nestes últimos largos anos!