Quando o sonho de um irredutível e extravagante gaulês transformou o FC Girondins de Bordeaux numa das potências desportivas do «Championnat» da década de 80. Não perca, esta noite pelas 20:05, a primeira mão dos oitavos-de-final da Liga Europa entre o Benfica e o Bordéus.
Não sei se Deus quis, mas Claude Bez sonhou e a obra nasceu. Com a figura do típico gaulês que conhecemos das aventuras aos quadradinhos criadas por Goscinny e Uderzo, com direito a bigode farfalhudo e tudo, o excêntrico presidente do Bordéus na década de 80 foi o principal responsável por uma clara viragem no domínio clubístico do «championnat» e pelo ciclo de ouro do FC Girondins de Bordeaux. Apenas com um campeonato ganho até então (em 1950), o fabuloso Bordéus do presidente Bez e do treinador Aimé Jacquet venceu três ligas e duas «coupes de france» em apenas quatro anos (entre 1983 e 1987), com craques do calibre de Giresse, Tigana, Lacombe, Vercruysse, Vujovic, Muller e Chalana a dominarem tudo e todos dentro das fronteiras gaulesas. Na Gironda morava uma irredutível e (quase) invencível equipa.
Apesar das conquistas a nível interno, as megalomanias de Bez não conseguiam, porém, ter o mesmo fim vitorioso na Europa. Já depois da amarga meia-final da TCE com a Juventus de Platini, Boniek, Rossi e Tardelli em 1985, a aventura europeia dos Girondinos conhecia um novo capítulo em Lisboa com um embate frente ao Benfica para a Taça das Taças. Estávamos em Outubro de 1986 e o Estádio da Luz vibrava com a perspectiva de mais uma gloriosa noite europeia. Ou assim pensavam os adeptos.
No frio da noite lisboeta, com Tigana a controlar superiormente o miolo, os comandados de Jacquet gelaram ainda mais os benfiquistas que se deslocaram ao estádio quando, logo aos 18 minutos, o mais talentoso dos gémeos Vujovic adiantou os gauleses no marcador ao aproveitar uma falha gritante de Dito para bater Silvino. Merecia melhor sorte o Benfica, mas futebol e justiça nem sempre combinam. A entrada no jogo tinha sido forte e, nos primeiros quinze minutos, pânico constituíra a palavra de ordem na defesa comandada por Battiston. Antes da desfeita de Vujovic, já Diamantino e Águas tinham ameaçado e Álvaro falhado incrivelmente na cara de Dropsy, mas a verdade é que o Benfica só conseguiria chegar ao golo à passagem dos 30 minutos através de Rui Águas. Orfão de ideias e de Manniche para a segunda parte, o chuveirinho encarnado encontrou sempre Specht e Battiston no fim do arco-íris e nem a entrada de Wando desatou o nó. O Bordéus levava um saboroso e importante empate a uma bola para a Gironda.
Para o jogo no Parc Lescure, o empate da primeira mão garantia o passaporte gaulês para novas andanças europeias, mas na comitiva benfiquista reinava a esperança. Com o bilhete de ingresso a preço acessível, a lotação previa-se esgotada pela presença de milhares de portugueses nas bancadas a dar apoio ao glorioso emblema da águia. Todo o optimismo foi, porém, em vão. O Benfica repetiu a aposta no jogo directo da primeira partida, mas a equipa, sem o possante Manniche na frente de ataque, nunca conseguiu tirar proveito do estilo de jogo adoptado; Rui Águas era presa fácil para os centrais contrários e as investidas de Diamantino eram impotentes perante a muralha gaulesa. Apesar de tudo, os comandados por John Mortimore até entraram decididos. O tempo ia passando com o jogo tombado na metade do campo atribuída ao Bordéus e o Benfica sentia mesmo que podia ganhar vantagem.
Depois tudo se complicou. O golo francês apareceu justamente antes do intervalo e a segunda metade abriu com a expulsão de Álvaro. E já que se fala em golo, refira-se como tudo aconteceu. Veloso apenas conseguia travar Zlatko Vujovic em falta e Vercruysse aproveitou as benesses para ir calibrando a pontaria do seu pé direito. Ao terceiro livre foi mesmo de vez; a bola saiu em arco sobre a barreira e foi anichar-se junto ao poste direito da baliza de Silvino. Estava aberto, soube-se depois, um buraco definitivo no porta-aviões encarnado. O Benfica ainda forçou, podia ter marcado o golo que daria o prolongamento, mas o resultado ficou mesmo como estava: vitória gaulesa no jogo e na eliminatória. Os encarnados caíam com algum estrondo na europa, mas reagrupavam-se para a disputa das provas internas e conseguiriam mesmo a dobradinha no final da época. «A história repete-se, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa», escreveu um dia o jovem Marx; desta vez, não seria tragédia nenhuma se tal acontecesse.
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