FOTO: SECÇÃO FOTOGRÁFICA DA AAC
Num país em que a ditadura usava a censura como arma preventiva e a
polícia política como arma repressiva, o beautiful game era muito mais do que um jogo. Era uma forma
de liberdade. Não perca, este domingo pelas 20:15, o jogo entre a Académica e o
Benfica a contar para a 4ª Jornada do Campeonato Nacional.
1969, como 2012, estava a ser um
ano complicado para a sociedade portuguesa, e com as lutas estudantis no seu
auge ser estudante em Coimbra era , ou podia ser, um problema sério. Nesse ano,
a Associação Académica de Coimbra possuía uma equipa de futebol extraordinária,
toda ela obrigatoriamente composta por estudantes, e o binómio universidade-desporto
estava de tal modo interligado que foi de forma muito natural que a AAC se
associou à luta estudantil, colocando-se como um dos principais meios de
divulgação dos protestos académicos que proclamavam ideais revolucionários e
reivindicativos. O futebol a funcionar, inevitavelmente, como arma política de uma
sociedade ávida de mudança.
Naquele primeiro domingo de Verão,
dia da final da Taça de Portugal de 1969, um comboio especial deixava a cidade
do Mondego e chegava à Estação de Santa Apolónia, cheio de adeptos da «Briosa».
Eram 11 da manhã e muitas pessoas aguardavam a sua chegada; sem organização e
sem mestres de cerimónia, rapidamente se formou um ruidoso cortejo que desfilou
pelas ruas de Lisboa, engrossando progressivamente. Num tempo de tantas
proibições buzinar não foi proibido naquela cinzenta manhã de domingo. – «Que é
isto?» – perguntava um transeunte mais incauto, perto do Terreiro do Paço. - «São
os estudantes de Coimbra» – logo lhe responderam por entre aplausos ao cortejo
que passava. Não havia dúvida, os ideais revolucionários tinham invadido Lisboa
através de uma mini-manifestação que teve o futebol como pano de fundo.
Sim, é verdade, durante a tarde
jogava-se um jogo de futebol. A Associação Académica de Coimbra defrontava o
Benfica na final do Jamor, depois de eliminar o Sporting nas meias-finais com vitórias
em Alvalade e no velhinho «Calhabé» (1-2 e 1-0, respectivamente). O regime
mostrava grandes sinais de preocupação com o jogo, pois temia-se que este fosse
usado como palco para uma extraordinária manifestação contra a ditadura. Várias
medidas de prevenção foram tomadas: as mais altas figuras do estado (chefe de
estado e membros do governo) não compareceram no estádio como era apanágio, por
indicação da polícia política que temia desacatos; a RTP, pela primeira vez
desde que iniciara transmissões da Taça, não televisionou o jogo (vivam os
transístores!); a FPF impediu a Académica de actuar de branco ou com qualquer
outra forma notada de luto académico; centenas de agentes da polícia política
infiltraram as bancadas; e até o Sporting esteve de prevenção, pois podia ser
chamado a jogar no lugar dos «Estudantes».
A final, essa, não foi
exactamente aquela que se poderia esperar. Até aos minutos finais, o
espectáculo viveu essencialmente do entusiamo da multidão que o presenciou (só
a tribuna esteve deserta), num ambiente de grande cumplicidade entre os adeptos
das duas equipas que começou com a entrada em campo dos jogadores da «Briosa» ostentando
imponentes capas negras pelos ombros. Apesar da constante incerteza no
resultado, a partida foi sempre jogada dentro de uma certa monotonia; a AAC escudava-se
num futebol mais de defesa e meio-campo, enquanto o Benfica ainda ia
emprestando ao jogo alguns períodos de boa cadência ofensiva, sem contudo
conseguir marcar. Mesmo sem Artur Jorge, impedido de jogar pelo regime por
estar a prestar serviço militar, os estudantes-futebolistas bateram-se com
galhardia, mas nunca conseguiram esconder o peso e a perturbação que todo o
ambiente à volta do jogo lhes causava. O inesperado golo de Manuel António, já
o sol mergulhava no horizonte, veio dar alento a quem desejava uma sensacional
vitória coimbrã, mas a mística do campeão Benfica não o permitiu. O golpe colocou
os encarnados à beirinha do abismo, é certo, mas na imensa categoria dos seus
jogadores ainda havia força e engenho para uma recuperação contra-relógio. E
foi Simões, um dos melhores em campo naquela tarde, que acabou por dar justiça
ao resultado apenas quatro minutos depois do tento academista. Um-um e vinha aí
o prolongamento.
A meia hora complementar foi
exactamente como se previa: trinta minutos difíceis para a Académica estiveram
para trinta minutos de consumação da vitória encarnada. Algures nesse período
de tempo, a bola passou por Viegas impelida pela testa de Eusébio e só parou no
fundo das malhas. Dois-um a favor de um estranho Benfica que passava grande
parte do tempo a dar matéria para as teses que defendiam o seu declínio, mas
terminava sempre a demonstrar categoria extra aos ombros de jogadores como
Eusébio, Simões e Jaime Graça, mas também Toni, Zeca, Humberto Coelho, Adolfo
ou Malta da Silva.
No fim, os jogadores benfiquistas
saíram vencedores com irrecusável justiça, mas tinham sido os estudantes-futebolistas
da AAC a conquistar a verdadeira vitória. No final da partida a festa foi
conjunta: os benfiquistas vestindo de negro, os academistas de vermelho. Entre
jogadores e adeptos não havia dúvidas: o Benfica tinha escapado por pouco
daquela que teria sido uma das derrotas mais saborosas da sua história.